“As pessoas resistem à ideia, mas a vida é só química”, diz vencedor do Nobel
brasil.elpais.com/brasil/ 8.7.
2019
Ganhador do Nobel e filho de outro laureado, Roger Kornberg sugere
que a ciência
torna desnecessárias as explicações religiosas
Em agosto de 1946, Roger Kornberg ainda era uma única célula,
formada pela união de um óvulo de sua mãe, a bioquímica
Ruth Levy Sylvy,
e de um espermatozoide do pai, o também bioquímico
Arthur Kornberg. Essa célula
já possuía o código hereditário
necessário para formar
um Roger com braços e pernas e mantê-lo vivo desde que nasceu, há 72 anos, em Saint Louis (EUA),
até hoje, uma tarde ensolarada
em um café em Valência.
O pai, Arthur,
ganhou o Nobel de Medicina em 1959 por esclarecer
os mecanismos de formação desse manual de instruções da célula, o DNA.
.
Quase meio século
depois, o próprio
Roger também ganhou
o Nobel, desta vez o de Química,
por dar um passo além do pai.
.
Aquela célula de 1946 que acabaria sendo Kornberg tinha dois metros
de DNA dobrados
em seu minúsculo
núcleo, como quase qualquer célula
de qualquer pessoa.
Graças a um processo chamado
transcrição, as células
copiam essas instruções
escritas em seu DNA e as escrevem
em outro idioma,
o das moléculas
de RNA, que são capazes
de sair o núcleo da célula. Lá fora, a festa começa.
Essas palavras de RNA comandam
a fabricação das proteínas, as verdadeiras protagonistas
da vida, como a hemoglobina
do sangue que nos permite
respirar e o colágeno que constrói ossos,
tendões, dentes e até o branco dos olhos.
“A vida é química,
nada mais e nada menos”, repete uma e outra vez Kornberg,
de passagem por Valência para participar do júri dos Prêmios Rei Jaime I. O pesquisador
da Universidade Stanford
recebeu o Nobel de Química
em 2006 por desvendar essa conversão do DNA em RNA, um processo que, se corre mal, pode levar ao câncer. Apesar
de ter despontado
no mundo das aberrações humanas,
ou precisamente por causa disso,
Kornberg é muito otimista: acredita
que chegaremos a viver num mundo sem doenças.
Pergunta. Conhecer
nossa base química
tem um aspecto
filosófico.
Resposta. Sim, esse é o cerne da questão.
A vida é química: nada mais e nada menos.
O funcionamento do cérebro é tão pouco compreendido que se tende a associá-lo
a significados mágicos
ou místicos. Mas quimicamente o cérebro é uma coleção
de fios e interruptores. Todos os cérebros
humanos são mais ou menos iguais e as pequenas
diferenças são resultado
de diferentes padrões
nos interruptores, baseados
em uma combinação
da nossa genética
e das nossas
experiências. Mas, no final, é química, nada mais e nada menos,
embora as pessoas
resistam à ideia.
Muitas pessoas querem
associar às suas próprias experiências
algum significado especial,
como a religião. Mas é química.
P. O senhor fala de “máquinas”
moleculares minúsculas que transformam as instruções do DNA em RNA. Essa maquininha pode cometer erros que levam à morte.
Podemos morrer simplesmente
por acaso?
R. Tudo -
desde a
forma do nosso corpo aos detalhes do nosso funcionamento - é consequência da informação genética. Mas descobrir como é exatamente
esse processo ainda é um grande desafio.
Nós entendemos o primeiro nível.
Sabemos que a informação em nossos genes é copiada
para outra molécula
chamada RNA, que então comanda
a síntese de proteínas. E as proteínas
fazem tudo. A ideia essencial
é que a informação nos genes é a base de tudo o que há para saber sobre nós. É verdade que pode haver modificações pela experiência, mas tudo começa
com a informação
que existe nos nossos genes.
Cada célula do corpo contém
as mesmas instruções
genéticas, todo o DNA, mas, no entanto,
temos 200 tipos diferentes de células: nervosas,
do fígado, do músculo, do sangue, da pele. A diferença entre elas são os genes usados em cada tecido.
E essa decisão
é tomada na hora de copiar as informações do DNA para o RNA. Se um erro for cometido, se o gene errado for ativado em um tecido
no qual deveria
ser silenciado, com muita frequência
se produz um câncer. Uma mudança em apenas uma das milhares
de letras de um gene pode causar
uma doença.
R. É uma loteria
no sentido de que as informações em nossos genes,
que herdamos dos nossos pais, devem ser copiadas com absoluta precisão.
Uma mudança em uma letra entre milhões
de letras pode ser fatal ou pode causar uma suscetibilidade a uma doença. A química da vida é extraordinária em muitos aspectos.
Nosso DNA sofre mutações devido
à radiação cósmica,
ao oxigênio, à luz solar e às substâncias químicas
de todo tipo, especialmente dos alimentos. Sofremos
dois trilhões de danos todos os dias. E todos devem ser corrigidos, porque
apenas um deles poderia causar
câncer ou outra doença. Esta é outra característica extraordinária da nossa fisiologia
e da nossa química: a capacidade de reparar todos esses danos sem erros todos os dias. É assombroso.
“Sofremos dois trilhões de danos no DNA todos os dias e todos devem ser corrigidos, porque
apenas um poderia
causar câncer”
P. Uma de suas palestras é intitulada O Fim da Doença. O senhor imagina
um futuro sem doenças?
R. Claro,
porque a vida é química.
Quando entendemos as bases químicas
das doenças, podemos
criar automaticamente estratégias
químicas para corrigi-las.
Não há dúvida
de que isso pode ser aplicado a doenças hereditárias
e ao envelhecimento. Obviamente,
quando aprendermos a prevenir o envelhecimento, criaremos
novos problemas para a sociedade.
Mas a resposta
à pergunta é sim. O fato essencial
é que tudo na vida é química
e todas as doenças refletem
uma distorção da química. Encontraremos
meios químicos para corrigi-las. Isso não acontecerá
em breve, e talvez não aconteça durante
a nossa vida, mas algum dia acontecerá.
P. Quase todas as suas pesquisas
foram financiadas pelos institutos nacionais
de saúde dos EUA. O que pensa do papel das grandes
empresas farmacêuticas?
R. É um erro pensar que as farmacêuticas
podem substituir a pesquisa com recursos públicos.
Nossa pesquisa é básica, no sentido de que é movida pela curiosidade sobre a natureza,
sem saber aonde vai te levar. Uma descoberta, por definição, não pode
ser
prevista. Você nunca descobre algo intencionalmente. Você descobre coisas
tentando entender a natureza. E essas descobertas
são a única base para o avanço
da medicina. O que distingue
a iniciativa acadêmica
da indústria farmacêutica
é que a primeira não está voltada
para certos objetivos.
Essa é a essência da pesquisa acadêmica.
As empresas farmacêuticas, por outro lado, não podem justificar um investimento em algo que não tenha um fim óbvio. Uma empresa não pode investir
dinheiro para fazer algo que talvez nunca tenha um benefício. É impossível.
“Todas as doenças refletem
uma distorção da química: vamos encontrar meios químicos para corrigi-las”
P. E os acadêmicos?
R. Os acadêmicos se arriscam, tentam
fazer coisas que podem levar a algo ou não. E você aposta, porque
se não chega a nada pode perder
sua posição acadêmica.
As farmacêuticas são alérgicas ao risco por natureza. Os negócios evitam
os riscos. Outra diferença é a escala
de tempo. Você não sabe quanto tempo vai precisar.
Muitas pesquisas exigem
décadas. Eu nunca fiz nada em menos de 20 anos. E, cada vez mais, infelizmente,
os gestores das farmacêuticas têm de informar
seus lucros a cada três meses. Que CEO dirá ao seu conselho de administração que a empresa
fez um grande
investimento em pesquisa
que pode não levar a nada e que exigirá
20 anos? E, ao mesmo tempo, sem esse tipo de pesquisa,
as empresas farmacêuticas
não têm nada. Minha mensagem
fundamental é que o Governo,
em nome dos cidadãos, tem de apoiar
as pesquisas que envolvam riscos
e possam exigir
muito tempo. Basicamente,
essa é a única solução
para problemas como infecções, doenças
genéticas e câncer.
“Você pode não saber nada sobre Cervantes
ou Shakespeare e ter uma vida muito produtiva”
Pergunta. O senhor disse em várias
ocasiões que se uma pessoa
culta precisa saber algo, esse algo é a química.
Resposta. A química é o mais útil porque
nos ajuda a entender o mundo ao nosso redor:
o corpo humano
e tudo o que está relacionado à saúde e ao meio ambiente. A química está na intersecção
entre a física,
que são as leis da natureza, e a biologia,
que é a sua manifestação.
Sem conhecer a química você não pode tomar decisões
informadas sobre sua saúde, sobre o meio ambiente... É ridículo.
P. Mas se valoriza mais saber sobre Cervantes ou Shakespeare do que sobre Dmitri Mendeleiev,
o pai da tabela periódica
dos elementos químicos.
R. É curioso, porque
você não pode saber nada sobre Cervantes
ou Shakespeare e ter uma vida muito produtiva. Mas se você não souber
nada sobre química,
em minha opinião,
você não se beneficia de tudo o que foi alcançado pela civilização. Os tempos mudaram
e a química
é a primeira
coisa. Há 100 anos se sabia tão pouco sobre qualquer ciência
que você não precisava saber muito de física para ser uma pessoa culta e bem-sucedida.
Importava o que você sabia de termodinâmica
ou cosmologia? Realmente
não. Mas no século XX surgiram a química, a biologia, a bioquímica, a medicina moderna.
Há pouco mais de 100 anos, as doenças eram atribuídas a desequilíbrios nos fluidos corporais.
Não havia cura para nenhuma
doença, havia tratamentos:
sangrias, purgantes agressivos.
Se há 200 anos você não sabia nada sobre química, biologia
ou medicina, não fazia grande
diferença na sua vida. Mas hoje faz muitíssima diferença.
Acredito que se as pessoas
fossem mais bem formadas em química e em biologia
estariam menos dispostas
a abusar de sua própria
fisiologia com drogas,
fumo...
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/08/ciencia/1562590067_810342.html Consulta em 26.8.19
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