quarta-feira, 6 de junho de 2018

"A VIDA É SÓ QUÍMICA" - ROGER KORNBERG



“As  pessoas  resistem  à  ideia,  mas  a  vida  é  só  química”,  diz  vencedor  do  Nobel

brasil.elpais.com/brasil/      8.7. 2019

Ganhador  do  Nobel  e  filho  de  outro  laureado,  Roger  Kornberg  sugere  que  a  ciência  torna  desnecessárias  as  explicações  religiosas
Em  agosto  de  1946,  Roger  Kornberg  ainda  era  uma  única  célula,  formada  pela  união  de  um  óvulo  de  sua  mãe,  a  bioquímica  Ruth  Levy  Sylvy,  e  de  um  espermatozoide  do  pai,  o  também  bioquímico  Arthur  Kornberg.    Essa  célula    possuía  o  código  hereditário  necessário  para  formar  um  Roger  com  braços  e  pernas  e  mantê-lo  vivo  desde  que  nasceu,    72  anos,  em  Saint  Louis  (EUA),  até  hoje,  uma  tarde  ensolarada  em  um  café  em  Valência.  O  pai,  Arthur,  ganhou  o  Nobel  de  Medicina  em  1959  por  esclarecer  os  mecanismos  de  formação  desse  manual  de  instruções  da  célula,  o  DNA. 
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Quase  meio  século  depois,  o  próprio  Roger  também  ganhou  o  Nobel,  desta  vez  o  de  Química,  por  dar  um  passo  além  do  pai.
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Aquela  célula  de  1946  que  acabaria  sendo  Kornberg  tinha  dois  metros  de  DNA  dobrados  em  seu  minúsculo  núcleo,  como  quase  qualquer  célula  de  qualquer  pessoa.  Graças  a  um  processo  chamado  transcrição,  as  células  copiam  essas  instruções  escritas  em  seu  DNA  e  as  escrevem  em  outro  idioma,  o  das  moléculas  de  RNA,  que  são  capazes  de  sair  o  núcleo  da  célula.    fora,  a  festa  começa.  Essas  palavras  de  RNA  comandam  a  fabricação  das  proteínas,  as  verdadeiras  protagonistas  da  vida,  como  a  hemoglobina  do  sangue  que  nos  permite  respirar  e  o  colágeno  que  constrói  ossos,  tendões,  dentes  e  até  o  branco  dos  olhos.
A  vida  é  química,  nada  mais  e  nada  menos”,  repete  uma  e  outra  vez  Kornberg,  de  passagem  por  Valência  para  participar  do  júri  dos  Prêmios  Rei  Jaime  I.  O  pesquisador  da  Universidade  Stanford  recebeu  o  Nobel  de  Química  em  2006  por  desvendar  essa  conversão  do  DNA  em  RNA,  um  processo  que,  se  corre  mal,  pode  levar  ao  câncer.  Apesar  de  ter  despontado  no  mundo  das  aberrações  humanas,  ou  precisamente  por  causa  disso,  Kornberg  é  muito  otimista:  acredita  que  chegaremos  a  viver  num  mundo  sem  doenças.
Pergunta.  Conhecer  nossa  base  química  tem  um  aspecto  filosófico.
Resposta.  Sim,  esse  é  o  cerne  da  questão.  A  vida  é  química:  nada  mais  e  nada  menos.  O  funcionamento  do  cérebro  é  tão  pouco  compreendido  que  se  tende  a  associá-lo  a  significados  mágicos  ou  místicos.  Mas  quimicamente  o  cérebro  é  uma  coleção  de  fios  e  interruptores.  Todos  os  cérebros  humanos  são  mais  ou  menos  iguais  e  as  pequenas  diferenças  são  resultado  de  diferentes  padrões  nos  interruptores,  baseados  em  uma  combinação  da  nossa  genética  e  das  nossas  experiências.  Mas,  no  final,  é  química,  nada  mais  e  nada  menos,  embora  as  pessoas  resistam  à  ideia.  Muitas  pessoas  querem  associar  às  suas  próprias  experiências  algum  significado  especial,  como  a  religião.  Mas  é  química.
P.  O  senhor  fala  de  “máquinas”  moleculares  minúsculas  que  transformam  as  instruções  do  DNA  em  RNA.  Essa  maquininha  pode  cometer  erros  que  levam  à  morte.  Podemos  morrer  simplesmente  por  acaso?
R.  Tudo  - desde  a  forma  do  nosso  corpo  aos  detalhes  do  nosso  funcionamento -  é  consequência  da  informação  genética.  Mas  descobrir  como  é  exatamente  esse  processo  ainda  é  um  grande  desafio.  Nós  entendemos  o  primeiro  nível.  Sabemos  que  a  informação  em  nossos  genes  é  copiada  para  outra  molécula  chamada  RNA,  que  então  comanda  a  síntese  de  proteínas.  E  as  proteínas  fazem  tudo.  A  ideia  essencial  é  que  a  informação  nos  genes  é  a  base  de  tudo  o  que    para  saber  sobre  nós.  É  verdade  que  pode  haver  modificações  pela  experiência,  mas  tudo  começa  com  a  informação  que  existe  nos  nossos  genes.  Cada  célula  do  corpo  contém  as  mesmas  instruções  genéticas,  todo  o  DNA,  mas,  no  entanto,  temos  200  tipos  diferentes  de  células:  nervosas,  do  fígado,  do  músculo,  do  sangue,  da  pele.  A  diferença  entre  elas  são  os  genes  usados  em  cada  tecido.  E  essa  decisão  é  tomada  na  hora  de  copiar  as  informações  do  DNA  para  o  RNA.  Se  um  erro  for  cometido,  se  o  gene  errado  for  ativado  em  um  tecido  no  qual  deveria  ser  silenciado,  com  muita  frequência  se  produz  um  câncer.  Uma  mudança  em  apenas  uma  das  milhares  de  letras  de  um  gene  pode  causar  uma  doença.
P.  É  uma  loteria?
R.  É  uma  loteria  no  sentido  de  que  as  informações  em  nossos  genes,  que  herdamos  dos  nossos  pais,  devem  ser  copiadas  com  absoluta  precisão.  Uma  mudança  em  uma  letra  entre  milhões  de  letras  pode  ser  fatal  ou  pode  causar  uma  suscetibilidade  a  uma  doença.  A  química  da  vida  é  extraordinária  em  muitos  aspectos.  Nosso  DNA  sofre  mutações  devido  à  radiação  cósmica,  ao  oxigênio,  à  luz  solar  e  às  substâncias  químicas  de  todo  tipo,  especialmente  dos  alimentos.  Sofremos  dois  trilhões  de  danos  todos  os  dias.  E  todos  devem  ser  corrigidos,  porque  apenas  um  deles  poderia  causar  câncer  ou  outra  doença.  Esta  é  outra  característica  extraordinária  da  nossa  fisiologia  e  da  nossa  química:  a  capacidade  de  reparar  todos  esses  danos  sem  erros  todos  os  dias.  É  assombroso.
“Sofremos  dois  trilhões  de  danos  no  DNA  todos  os  dias  e  todos  devem  ser  corrigidos,  porque  apenas  um  poderia  causar  câncer”
P.  Uma  de  suas  palestras  é  intitulada  O  Fim  da  Doença.  O  senhor  imagina  um  futuro  sem  doenças?
R.  Claro,  porque  a  vida  é  química.  Quando  entendemos  as  bases  químicas  das  doenças,  podemos  criar  automaticamente  estratégias  químicas  para  corrigi-las.  Não    dúvida  de  que  isso  pode  ser  aplicado  a  doenças  hereditárias  e  ao  envelhecimento.  Obviamente,  quando  aprendermos  a  prevenir  o  envelhecimento,  criaremos  novos  problemas  para  a  sociedade.  Mas  a  resposta  à  pergunta  é  sim.  O  fato  essencial  é  que  tudo  na  vida  é  química  e  todas  as  doenças  refletem  uma  distorção  da  química.  Encontraremos  meios  químicos  para  corrigi-las.  Isso  não  acontecerá  em  breve,  e  talvez  não  aconteça  durante  a  nossa  vida,  mas  algum  dia  acontecerá.
P.  Quase  todas  as  suas  pesquisas  foram  financiadas  pelos  institutos  nacionais  de  saúde  dos  EUA.  O  que  pensa  do  papel  das  grandes  empresas  farmacêuticas?
R.  É  um  erro  pensar  que  as  farmacêuticas  podem  substituir  a  pesquisa  com  recursos  públicos.  Nossa  pesquisa  é  básica,  no  sentido  de  que  é  movida  pela  curiosidade  sobre  a  natureza,  sem  saber  aonde  vai  te  levar.  Uma  descoberta,  por  definição,  não  pode  ser  prevista.  Você  nunca  descobre  algo  intencionalmente.  Você  descobre  coisas  tentando  entender  a  natureza.  E  essas  descobertas  são  a  única  base  para  o  avanço  da  medicina.  O  que  distingue  a  iniciativa  acadêmica  da  indústria  farmacêutica  é  que  a  primeira  não  está  voltada  para  certos  objetivos.  Essa  é  a  essência  da  pesquisa  acadêmica.  As  empresas  farmacêuticas,  por  outro  lado,  não  podem  justificar  um  investimento  em  algo  que  não  tenha  um  fim  óbvio.  Uma  empresa  não  pode  investir  dinheiro  para  fazer  algo  que  talvez  nunca  tenha  um  benefício.  É  impossível.
“Todas  as  doenças  refletem  uma  distorção  da  química:  vamos  encontrar  meios  químicos  para  corrigi-las”
P.  E  os  acadêmicos?
R.  Os  acadêmicos  se  arriscam,  tentam  fazer  coisas  que  podem  levar  a  algo  ou  não.  E  você  aposta,  porque  se  não  chega  a  nada  pode  perder  sua  posição  acadêmica.  As  farmacêuticas  são  alérgicas  ao  risco  por  natureza.  Os  negócios  evitam  os  riscos.  Outra  diferença  é  a  escala  de  tempo.  Você  não  sabe  quanto  tempo  vai  precisar.  Muitas  pesquisas  exigem  décadas.  Eu  nunca  fiz  nada  em  menos  de  20  anos.  E,  cada  vez  mais,  infelizmente,  os  gestores  das  farmacêuticas  têm  de  informar  seus  lucros  a  cada  três  meses.  Que  CEO  dirá  ao  seu  conselho  de  administração  que  a  empresa  fez  um  grande  investimento  em  pesquisa  que  pode  não  levar  a  nada  e  que  exigirá  20  anos?  E,  ao  mesmo  tempo,  sem  esse  tipo  de  pesquisa,  as  empresas  farmacêuticas  não  têm  nada.  Minha  mensagem  fundamental  é  que  o  Governo,  em  nome  dos  cidadãos,  tem  de  apoiar  as  pesquisas  que  envolvam  riscos  e  possam  exigir  muito  tempo.  Basicamente,  essa  é  a  única  solução  para  problemas  como  infecções,  doenças  genéticas  e  câncer.
“Você  pode  não  saber  nada  sobre  Cervantes  ou  Shakespeare  e  ter  uma  vida  muito  produtiva”
Pergunta.  O  senhor  disse  em  várias  ocasiões  que  se  uma  pessoa  culta  precisa  saber  algo,  esse  algo  é  a  química.
Resposta.  A  química  é  o  mais  útil  porque  nos  ajuda  a  entender  o  mundo  ao  nosso  redor:  o  corpo  humano  e  tudo  o  que  está  relacionado  à  saúde  e  ao  meio  ambiente.  A  química  está  na  intersecção  entre  a  física,  que  são  as  leis  da  natureza,  e  a  biologia,  que  é  a  sua  manifestação.  Sem  conhecer  a  química  você  não  pode  tomar  decisões  informadas  sobre  sua  saúde,  sobre  o  meio  ambiente...  É  ridículo.
P.  Mas  se  valoriza  mais  saber  sobre  Cervantes  ou  Shakespeare  do  que  sobre  Dmitri  Mendeleiev,  o  pai  da  tabela  periódica  dos  elementos  químicos.
R.  É  curioso,  porque  você  não  pode  saber  nada  sobre  Cervantes  ou  Shakespeare  e  ter  uma  vida  muito  produtiva.  Mas  se  você  não  souber  nada  sobre  química,  em  minha  opinião,  você  não  se  beneficia  de  tudo  o  que  foi  alcançado  pela  civilização.  Os  tempos  mudaram  e  a  química  é  a  primeira  coisa.    100  anos  se  sabia  tão  pouco  sobre  qualquer  ciência  que  você  não  precisava  saber  muito  de  física  para  ser  uma  pessoa  culta  e  bem-sucedida.  Importava  o  que  você  sabia  de  termodinâmica  ou  cosmologia?  Realmente  não.  Mas  no  século  XX  surgiram  a  química,  a  biologia,  a  bioquímica,  a  medicina  moderna.    pouco  mais  de  100  anos,  as  doenças  eram  atribuídas  a  desequilíbrios  nos  fluidos  corporais.  Não  havia  cura  para  nenhuma  doença,  havia  tratamentos:  sangrias,  purgantes  agressivos.  Se    200  anos  você  não  sabia  nada  sobre  química,  biologia  ou  medicina,  não  fazia  grande  diferença  na  sua  vida.  Mas  hoje  faz  muitíssima  diferença.  Acredito  que  se  as  pessoas  fossem  mais  bem  formadas  em  química  e  em  biologia  estariam  menos  dispostas  a  abusar  de  sua  própria  fisiologia  com  drogas,  fumo...


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